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segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

 

Do Mundo Virtual ao Espiritual

Do Mundo Virtual ao Espiritual

Por Frei Betto

Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete,
da Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos,
comedidos, recolhidos em paz em seus mantos cor de açafrão.
Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo:
a sala de espera cheia de executivos com telefones celulares,
preocupados, ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam.
Com certeza, já haviam tomado café da manhã em casa, mas como
a companhia aérea oferecia um outro café, todos comiam
vorazmente. Aquilo me fez refletir: "Qual dos dois modelos
produz felicidade?"

Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e
perguntei: "Não foi à aula?" Ela respondeu: "Não, tenho aula à
tarde". Comemorei: "Que bom, então de manhã você pode brincar,
dormir até mais tarde". "Não", retrucou ela, "tenho tanta coisa de
manhã..." "Que tanta coisa?", perguntei. "Aulas de inglês, de balé,
de pintura, piscina", e começou a elencar seu programa de garota
robotizada. Fiquei pensando: "Que pena, a Daniela não disse:
"Tenho aula de meditação!"

Estamos construindo super-homens e supermulheres, totalmente
equipados, mas emocionalmente infantilizados. Por isso as empresas
consideram agora que, mais importante que o QI, é a IE, a Inteligência
Emocional. Não adianta ser um superexecutivo se não se consegue se
relacionar com as pessoas. Ora, como seria importante os currículos
escolares incluírem aulas de meditação!

Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em
1960, seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta
academias de ginástica e três livrarias! Não tenho nada contra
malhar o corpo, mas me preocupo com a desproporção em relação à
malhação do espírito. Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos:
"Como estava o defunto?". "Olha, uma maravilha, não tinha
uma celulite!" Mas como fica a questão da subjetividade?
Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa?

Outrora, falava-se em realidade: análise da realidade, inserir-
se na realidade, conhecer a realidade. Hoje, a palavra é
virtualidade. Tudo é virtual. Pode-se fazer sexo virtual pela
internet: não se pega aids, não há envolvimento emocional, controla-
se no mouse. Trancado em seu quarto, em Brasília, um homem pode
ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma preocupação de conhecer
o seu vizi­nho de prédio ou de quadra! Tudo é virtual, entramos na
virtualidade de todos os valores, não há compromisso com o real! É
muito grave esse processo de abstração da linguagem, de sentimentos:
somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos virtuais.
Enquanto isso, a realidade vai por outro lado, pois somos também
eticamente virtuais.

A cultura começa onde a natureza termina. Cultura é o
refinamento do espírito. Televisão, no Brasil - com raras e honrosas
exceções -, é um problema: a cada semana que passa, temos a sensação
de que ficamos um pouco menos cultos.

A palavra hoje é 'entretenimento'; domingo, então, é o dia
nacional da imbecilização coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil
quem vai lá e se apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde
diante da tela. Como a publicidade não consegue vender felicidade,
passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de
prazeres: "Se tomar este refrigerante, vestir este tênis,­ usar esta
camisa, comprar este carro, você chega lá!" O problema é que, em
geral, não se chega! Quem cede desenvolve de tal maneira o desejo,
que acaba­ precisando de um analista. Ou de remédios. Quem resiste,
aumenta a neurose.

Os psicanalistas tentam descobrir o que fazer com o desejo dos
seus pacientes. Colocá-los onde? Eu, que não sou da área, posso me
dar o direito de apresentar uma su­gestão. Acho que só há uma saída:
virar o desejo para dentro. Porque, para fora, ele não tem aonde ir!
O grande desafio é virar o desejo para dentro, gostar de si mesmo,
começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento
globalizante, neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver melhor.
Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são indispensáveis:
amizades, auto-estima, ausência de estresse.

Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Se alguém
vai à Europa e visita uma pequena cidade onde há uma catedral, deve
procurar saber a história daquela cidade - a catedral é o sinal de
que ela tem história. Na Idade Média, as cidades adquiriam status
construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um shopping
center. É curioso: a maioria dos shopping centers tem linhas
arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles não se pode ir de
qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingos. E ali
dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças
de rua, sujeira pelas calçadas...

Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno,
aquela musiquinha de esperar dentista. Observam-se os vários nichos,
todas aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo,
acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-
se no reino dos céus. Se deve passar cheque pré-datado, pagar a
crédito, entrar no cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se
não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno... Felizmente,
terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa,
com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do McDonald's.

Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das
lojas: "Estou apenas fazendo um passeio socrático." Diante de seus
olhares espantados, explico: "Sócrates, filósofo grego, também
gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de
Atenas. Quando vendedores como vocês o assediavam, ele
respondia: "Estou apenas observando quanta coisa existe de que não
preciso para ser feliz."

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Luis Fernando
Veríssimo e outros, de "O desafio ético" (Garamond), entre outros
livros.

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