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quarta-feira, 9 de novembro de 2005

 

Cristovam Buarque - Nossas dívidas - Revista abnee - outubro de 2005

Recentemente, uma jovem turca, estudante de Berkeley, contou-me ter usado, durante o ano de 2002, um button do Partido dos Trabalhadores brasileiro. Sem conhecer o Brasil, torcia pela eleição de Lula. Como ela, milhões de jovens torceram pela eleição de um presidente de esquerda no Brasil. Passados 30 meses, nós, do PT, estamos em dívida com essa juventude do mundo inteiro, que sonhou com a possibilidade de uma alternativa ao pensamento único e à globalização neoliberal. Essa dívida decorre de diversas outras.A dívida maior é com os pobres brasileiros. O Brasil é um país dividido, dono da maior concentração de renda do mundo e de um modelo de “apartação”, o apartheid social brasileiro. O governo Lula não apresentou, em 30 meses, um programa para abolir a exclusão social e fazer do Brasil uma nação integrada. Isso era perfeitamente possível. Uma revolução na educação, um sistema fiscal e orçamentário distributivo, um conjunto de leis que incorporassem os excluídos nos direitos da cidadania teriam permitido uma “revolução-do-bom-senso”. A renda do setor público brasileiro permitiria essas ações sem qualquer ruptura nos pilares da política econômica. Lula tinha credibilidade para pedir sacrifícios à parcela rica brasileira, e argumentos para mostrar que essa mudança seria positiva para todas as classes. Perdemos a chance de mostrar ao mundo que é possível uma globalização sem exclusão. Nada fizemos para nos livrarmos do título de campeão mundial de concentração da renda.A visão de que a pobreza se resolve pelo mercado aliada a medidas assistenciais impediu a formulação de uma alternativa. A pobreza continuou sendo vista como assunto da economia privada, e não de políticas públicas.Como conseqüência, deixamos de oferecer qualquer opção ao modelo econômico que herdamos. Os limites financeiros e econômicos e as amarras impostas pela realidade mundial certamente impediram grandes mudanças no modelo econômico. O governo Lula assumiu uma economia em crise, agravada pelo temor internacional e nacional das ações que o governo poderia tomar. Era preciso acalmar o mercado, adquirir confiança, mudar pouco. Mas era preciso também indicar uma mudança no futuro. O mundo esperava isso do PT, assim exigimos dos governos anteriores. Tínhamos idéias e propostas. Não tínhamos o direito de continuar sendo o mesmo para sempre. Essa continuidade é uma dívida a mais.Outra dívida foi não termos transformado o Brasil em canteiro de debate para novas idéias. Quando na oposição, o PT organizou o Fórum Social Global; agora, no governo, ensimesmou-se na arrogância de que tudo sabia e de que o caminho era não fazer nada novo, por falta de alternativa. Dentro do PT, um bloco majoritário assumiu o controle, cercou Lula com sua aquiescência, e impediu o debate interno. Os críticos foram destituídos do governo, isolados e ameaçados de expulsão. O Brasil de Lula tornou-se um terreno sem debates. O pensamento único está mais forte do que antes, pois desapareceu a crítica que vinha do PT e dos movimentos sociais. Estes perderam a voz, intimidaram-se. E como a prática do governo desmoraliza propostas alternativas e a oposição não precisa elaborar suas idéias, porque o governo Lula as adotou.O medo do debate e a arrogância do poder impediram o governo Lula de inovar na democracia. O PT criou o orçamento participativo, mas seu governo não fez um gesto para democratizar a ação política. Ao contrário, mantém o povo e os quadros do partido afastados das decisões, controla as opiniões dentro do partido, abusa da manipulação pelo marketing e, pior,permitiu a suspeita da vergonhosa compra de votos de parlamentares da oposição. O governo Lula e o PT estão em dívida pela falta de novidade nos instrumentos da prática democrática, como havíamos feito nos governos estatais e municipais que ocupamos, e como defendíamos para o governo federal.Sem democracia e sem transparência, estamos, para surpresa geral, em dívida por causa da imagem de corrupção que governo e partido estão passando. Independentemente das conclusões das comissões que investigam as denúncias, o governo deixou de adotar posturas éticas na vida pública, como também medidas para aumentar a transparência, fiscalização e punição de desvios dentro dos governos. Acreditou que, por ser petista, estaria livre de corrupção, dispensando medidas preventivas. Perdeu assim a chance de transformar definitivamente a prática política no Brasil. Adquiriu uma dívida adicional.Sem idéias efervescentes e sem debate político, não houve tampouco tratamento distinto para os temas ambientais. Todos achavam que o governo Lula mostraria ao mundo que somos capazes de cuidar da Amazônia, de combinar crescimento econômico com proteção ambiental. Do Brasil com um patrimônio amazônico e um governo de esquerda esperava-se a execução de um novo modelo de desenvolvimento sustentável. Em vez disso, precisamos nos desculpar pela rapidez do desmatamento e da degradação ambiental; estamos em débito com o mundo.Não demos um salto na reforma agrária, não acabamos com a violência rural. O Brasil perpetua a mesma estrutura de propriedade, agravada agora pelo incentivo ao agrobusiness, sem controle social - das relações com a população local - ou ecológico - do impacto no meio ambiente.Todas essas dívidas têm uma razão. O discurso do PT nunca se afirmou como proposta clara, alternativa, aglutinadora, em busca de uma nova sociedade e de um futuro diferente para o Brasil. Nunca tivemos uma Causa maior: sempre fomos um guarda-chuva de reivindicações corporativas e uma tribuna de discursos anti-capitalistas. Quando tivemos que fazer concessões para chegar ao governo, não mantivemos nossos princípios, porque não tínhamos objetivos claros. A falta de um marco ideológico se agravou com a arrogância do núcleo que se instalou no poder; e com a posição de Lula, agindo como um presidente de honra que unifica, e não como um líder que conduz.O PT chegou ao poder sem uma Causa, um programa, sem fazer uma reciclagem, como os partidos de esquerda da Europa, antes de chegarem ao poder, sem formular um programa de esquerda. Tínhamos o discurso apenas, e para governar foi preciso abandoná-lo, sem tempo de substituí-lo. Não inventamos o petismo. Essa foi a nossa maior dívida, e a causa das demais.
Artigo originalmente publicado em espanhol no jornal El Pais. Agora, publicado pela revista da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica - edição de outubro de 2005.

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